terça-feira, 19 de novembro de 2024
A metamorfose de Kafka
A Metamorfose de Franz Kafka é uma daquelas obras que nos faz refletir longamente após a sua leitura. Não é apenas a história de um homem que se acorda transformado em inseto, mas uma profunda reflexão filosófica sobre a alienação, a identidade e o absurdo da existência humana.
Do ponto de vista existencialista, a transformação de Gregor Samsa pode ser vista como uma metáfora do sentimento de estar preso numa vida que já não reconhecemos como a nossa. Quantas vezes nos sentimos estranhos na nossa própria pele, desconectados de quem somos, meros espetadores da nossa própria vida ou do que os outros esperam de nós? Gregor, ao tornar-se um inseto, representa esse sentimento extremo de desumanização, de se tornar algo que já não se encaixa no mundo, nem mesmo na sua própria família.
Kafka confronta-nos com uma ideia-chave da filosofia existencialista: o isolamento do indivíduo. Gregor, na sua nova forma, é incapaz de comunicar, de ser compreendido ou aceito. Este isolamento não é apenas físico, é existencial. É aqui que ressoa o pensamento de Jean-Paul Sartre e a sua ideia de que «o inferno são os outros». Gregor é rejeitado e temido, e embora continue a ser o mesmo por dentro, a sua aparência condena-o à solidão e ao esquecimento.
Além disso, A Metamorfose fala-nos também do absurdo, um conceito que Albert Camus desenvolve na sua filosofia. A transformação de Gregor não tem explicação nem sentido, e é precisamente esse o objetivo. Num mundo absurdo, as coisas acontecem sem razão aparente e nós, enquanto seres humanos, somos obrigados a enfrentá-las sem ter respostas. Gregor não se pergunta por que se tornou um inseto; ele tenta simplesmente adaptar-se, continuar a sua vida. Mas, no final, o absurdo esmagá-o.
Gregor perde o seu valor aos olhos da família no momento em que já não pode trabalhar nem satisfazer as expectativas sociais. A sua transformação física reflete uma verdade mais profunda: somos vulneráveis a perder o nosso lugar no mundo quando deixamos de cumprir os papéis que nos impõem.
A metamorfose é um aviso sobre a fragilidade da identidade e a desconexão entre o ser humano e o seu ambiente. Kafka recorda-nos que, neste mundo cheio de normas, expectativas e julgamentos, a verdadeira tragédia reside em perder o vínculo com a nossa própria humanidade e, nesse processo, ser esquecidos ou afastados por aqueles que deveriam compreender-nos.
A obra de Kafka deixa-nos uma questão inquietante:
Quanto da nossa identidade é definida pelos outros?
*Quentin Machado**
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