quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Dilúvio é um mito comum a vários povos



*Cada continente tem suas versões de uma inundação de origem divina:

*Lendas talvez estejam associadas ao degelo após a última glaciação:

Inundações e dilúvios, geralmente provocados por Deus ou pelos deuses com o intuito de destruir a humanidade inteira, são um tópico que se encontra na mitologia dos mais diversos povos, do Oriente Médio à Índia, da Oceania às Américas.

A mais famosa dessas histórias é a do patriarca Noé, no livro bíblico chamado "Gênese". Embora esta descenda de lendas da Mesopotâmia, há muitas outras cujas semelhanças não se explicam nem através de contatos nem de influências culturais.

Segundo a Bíblia, Deus (Javé), desencantado com a vileza e com os crimes dos homens, resolveu exterminá-los através de chuvas ininterruptas que os afogariam juntamente com o restante da criação. Somente Noé foi considerado justo o suficiente para ser salvo. Avisado de antemão pelo Senhor, ele construiu uma embarcação, a arca, e nesta sobreviveu, com sua família e com animais selecionados, os quarenta dias e noites de chuvas, repovoando depois a Terra. Deus, por seu turno, arrependeu-se do que fez e prometeu não repeti-lo.


Sumérios e babilônios

Esse mito, do primeiro milênio anterior à era cristã, descende daqueles surgidos há 4.000 ou 5.000 anos na Mesopotâmia (atual Iraque), entre os sumérios, a primeira civilização a desenvolver a escrita, e transmitidos posteriormente pelos babilônios e assírios.

Na versão suméria, a "Gênese de Eridu", o herói que constrói uma arca se chama Ziusudra. A genealogia dos reis lendários e históricos da Suméria também faz referência a um dilúvio.

Entre os babilônios, o mito aparece tanto na epopéia de "Guilgâmesh" quanto na narrativa de "Atrahasis". Buscando a imortalidade, o protagonista do poema épico encontra Utnapishtim, um personagem que, advertido pelo deus Ea (Enki na versão suméria), não apenas sobrevivera ao dilúvio fazendo seu próprio barco, como fora em seguida tornado imortal pelas divindades.

Já na narrativa de "Atrahasis", é o deus Enlil que se cansa da Terra superpovoada, enquanto o deus Enki resgata o herói.


Atlântida

A mitologia grega fala dos dilúvios de Ogiges e Deucalião (e Platão lembra a inundação que destruiu Atlântida). As escrituras hindus contam o de Manu (nos "Puranas", no "Chatapatha Brâhmana" e no "Mahabhárata").

Os persas e escandinavos (no "Edda") também têm seus dilúvios, bem como os chineses e indonésios. Alguns decorrem de chuvas torrenciais, outros do transbordamento ou da elevação de rios e mares.

Inúmeros povos americanos possuem, cada qual, a sua versão do desastre aquático: os aztecas do México -em cuja variante um homem, Tapi, salva em seu barco a mulher e um casal de cada animal-, os maias da Guatemala (no caso destes ocasionado pelo deus dos ventos, Huracan), os incas dos Andes, os hopis das América do Norte etc.


Experiência comum?

Que esses acontecimentos míticos tenham sido preservados em tantas culturas e civilizações, muitas das quais nunca chegaram a entrar em contato, é um mistério fascinante. Daí a tentar achar alguma experiência pré-histórica comum ou a formular teorias como a do inconsciente coletivo é só um passo.

Se bem que muitos dos povos em questão vivessem em vales fluviais (os sumérios, os hindus, os chineses) ou em litorais (os gregos, os escandinavos, os indonésios) sujeitos à imprevisibilidade das águas, e saibamos também de catástrofes como as erupções na ilha grega de Santorim (século 14/15 a.C.) ou dos vulcões Tambora e Krakatoa (ambos no século 19, na Indonésia), a maior das tentações é a de associar essas lendas ao final da última glaciação que, não obstante ter ocorrido há mais de 12 mil anos, teria, de algum modo, se registrado na memória humana.

Como, durante os milênios glaciais, boa parte das águas do planeta ficaram retidas nas calotas polares e em gigantescas geleiras, o nível dos mares e oceanos era consideravelmente mais baixo e amplas extensões de terra que hoje se encontram debaixo deles podiam ser habitadas, por exemplo, a Beríngia, a ponte terrestre que, unindo a Ásia às Américas, permitiu o povoamento destas.

O próprio mar Negro, antes que o degelo ocasionasse sua invasão pelas águas do mar Mediterrâneo, constituía um lago em cuja orla se estabeleceram algumas comunidades paleolíticas. Não obstante esses processos serem muito vagarosos, levando séculos, um ou outro talvez ocorresse mais rapidamente. Sua relação com os mitos preservados, porém, tem mais de imaginação que de ciência demonstrável.


NELSON ASCHER

COLUNISTA DA FOLHA

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