domingo, 31 de dezembro de 2023

Reflexão sobre os enteógenos



Na Idade Média, o uso de vegetais, fungos e secreções animais, contendo compostos com acentuado efeito psicoativo, foi intensamente combatido pela Igreja Católica. Associava-se o ato às “forças do mal” e aqueles, que incentivavam essas práticas, poderiam ser executados como bruxos nas fogueiras da Inquisição. Com a descoberta do Novo Mundo, o mesmo conceito foi levado aos povos nativos das Américas que, desde tempos imemoriais, já empregavam seus próprios preparos psicoativos com o principal intuito de acessar aos seus deuses. Aqui, o poder coercitivo exercido pela Igreja também se fez presente.

A lei brasileira, acompanhando a instituição do Controlled Substances Act, assinado em 1971 pelos membros da Organização das Nações Unidas (ONU), considera delito penal o consumo de uma série de compostos psicoativos. Inseriu o DMT e outros como a psilocibina, psilocina, LSD-25, mescalina e canabinoides na categoria de substâncias sem fins terapêuticos, de uso não seguro e com alto potencial de abuso. Configuram na Lista F2 da Portaria n° 344/1998, ANVISA, como substâncias psicotrópicas de uso proscrito. Paradoxalmente, o Estado brasileiro contempla o consumo legal da ayahuasca, em contexto religioso, inclusive por mulheres grávidas e crianças, mesmo não havendo estudos científicos conclusivos sobre os efeitos da bebida no organismo de indivíduos com o sistema nervoso central ainda em formação.

Em uma parte dos casos, mas não na maioria, os líderes religiosos estipulam restrições em relação às quantidades oferecidas e ao número de rituais específicos para a participação de crianças. Nesses centros, no momento da admissão de um indivíduo adulto, que se propõe a seguir a religião, é feita uma entrevista na qual, entre outros aspectos, procura-se elucidar o quadro clínico a partir do seu histórico médico, a fim de avaliar se há a possibilidade do pretenso, em participar no consumo do sacramento. Sabe-se que indivíduos com certas patologias comuns, como a hipertensão, ou com distúrbios mentais, como transtorno bipolar e esquizofrenia, são severamente contraindicados à ingestão da ayahuasca.

Mesmo com os critérios adotados nos centros religiosos mais sérios, não se tem conhecimento preciso acerca das concentrações dos psicoativos nas bebidas, uma vez que esses níveis variam muito nos vegetais utilizados nesses preparos, dependendo de fatores como as características da terra, condições climáticas e das quantidades vegetais empregadas na preparação da bebida. Até mesmo o horário de coleta das plantas pode influenciar no nível de concentração de um dado composto.

O que se constata, contudo, devido à rápida expansão sem controle desses cultos, inclusive com a proliferação de novas ramificações religiosas, com novos dogmas, geralmente, em muitos centros, não há sequer uma liderança devidamente preparada para conduzir os rituais envolvendo a ayahuasca. Além da falta de critérios na administração da bebida, também não há um acompanhamento adequado, fundamental aos que se encontram sob o efeito da combinação de DMT e inibidores da MAO, e muito menos, conhecimento sobre possíveis interações com alguns medicamentos alopáticos de uso continuo ou com alimentos ricos em tiramina.

Por outro lado, contrariando a definição imposta pela Lei, inúmeras aplicações terapêuticas vêm sendo apontadas em crescente número de pesquisas, como nos estudos para a aplicação da ibogaína e da própria ayahuasca, na recuperação de dependentes crônicos de álcool, tabaco, heroína, cocaína e suas variações. Ainda, fármacos constituídos por princípios psicoativos do gênero Cannabis são empregados em terapias, para os casos de esclerose múltipla e glaucoma. Também, como estimulantes do apetite, assim como na diminuição de náuseas, comuns nos tratamentos de AIDS e câncer. Há pesquisas que comprovam a efetiva ação dos canabinoides na redução de tumores cancerígenos, em modelos animais. Testes clínicos em humanos estão em curso.

Sem esquecermos, obviamente, o sucesso obtido no intenso uso do LSD-25, da psilocibina e da mescalina em importantes estudos psicoterapêuticos, notadamente nas décadas de 1950 e 1960. Apesar do crescente número de novas publicações, reportando aplicações do LSD nessas psicoterapias, após quase duas décadas de proibições nos EUA, não há mais o interesse da indústria farmacêutica em investir em novas pesquisas. Para citar apenas um exemplo, um derivado bromado do LSD, sintético não psicoativo, apresenta eficácia comprovada no tratamento dos sintomas da enxaqueca crônica, sem graves reações adversas. No entanto, nenhum grupo farmacêutico demonstrou interesse na nova droga. A patente do LSD e dos seus derivados caducou ainda na década de 1960.

No mundo ocidental, tem-se o comércio regularizado de álcool e tabaco, responsáveis diretos por milhões de mortes anuais em todo o mundo, com enormes custos para o Estado, em gastos envolvidos com o tratamento de patologias diretamente relacionadas ao consumo desses psicoativos, como o câncer. Aquilo que é legalmente comercializado causa muito mais danos físicos e dependência, do que substâncias contidas na Lista F2, como os canabinoides e o LSD. A proibição, no caso específico da Cannabis, que mesmo apresentando mais de três milênios de uso terapêutico, foi sustentado pela divulgação massiva nos EUA, ainda no início do século 20, de falsos efeitos associados ao consumo da planta.

No Brasil, não há proibição explícita às pesquisas envolvendo a classe de psicoativos constantes na Lista F2, apenas a ressalva de que todo estudo desse tipo deve ser submetido à aprovação da ANVISA, através da expedição de “Autorização Especial Simplificada para Estabelecimentos de Ensino e Pesquisa”. O pesquisador, interessado em desenvolver estudos envolvendo esses compostos, a fim de adquirir os padrões comerciais em laboratórios no exterior, deve providenciar uma série de documentos para compor um dossiê a ser avaliado por essa Agência. Os trâmites, claramente, parecem atuar em consonância com a política proibicionista do Estado.

Apesar de algumas dessas substâncias possuírem grande potencial para uso terapêutico, além de não apresentarem riscos à dependência química, ou não provocarem danos fisiológicos significativos, ainda assim prevalece o preconceito e transparece a ineficácia das leis que visam combater o uso de drogas proscritas. Se não são capazes de definir com critérios científicos o que é realmente nocivo, sequer conseguem impedir o consumo crescente que, por sua vez, financia o próprio crime organizado.

Por fim, pela burocracia absurda imposta à pesquisa, essas leis têm ação negativa onde menos deveriam atuar, sobre a evolução do conhecimento humano. Diante da derrota na guerra contra as drogas, com trilhões de dólares gastos, em poucas décadas, para apenas constatar o aumento do consumo e da criminalidade, a ONU, com a criação do Global Commission on Drug Policy, sinaliza para o final do conflito. Com a posição de alguns países na direção da descriminalização do uso de psicoativos, no século 21, começamos a nos distanciar da “Idade das Trevas”.

Alain Gaujac - Tese



UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE QUÍMICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM QUÍMICA



Estudos sobre o psicoativo N,N-dimetiltriptamina (DMT) em Mimosa tenuiflora (Willd.) Poiret e em bebidas consumidas em contexto religioso

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